Muito bem. Conseguiram. Eu que normalmente evito entrar – publicamente – em discussões polarizantes, me vejo agora arrastado por um artigo da Folha de S. Paulo a discutir psicanálise (uma área de estudo da Psicologia muito cara a mim) e a associação da ideia de nunca desistir ao fascismo. Valha-me Deus.
Antes de mais nada, preciso deixar claro que li o artigo e, levando em consideração que minha capacidade de interpretação de texto esteja adequadamente funcional, associar a ideia de não desistir ao fascismo me parece um grande “bait” (quando alguém usa um termo polêmico para “fisgar” a atenção de alguém).
Em um resumo sensacionalista, pode-se dizer que Adam Phillips, editor das traduções inglesas da obra de Sigmund Freud da Penguin Books, ex-diretor de psicoterapia infantil do Wolwerton Gardens Child e do Family Consultation Centre, em Londres, afirma que:
“O herói trágico não desiste, ele não aprende a desistir, apesar dos males causados a ele e aos outros, (…) A ideia de nunca desistir é fascista.”
Adam Phillips
Porém a história não é tão simples. Se formos avaliar o raciocínio de Phillips sobre desistir ou não desistir é coerente. Em outra oportunidade ele afirma:
“Muito trabalho cultural entra na valorização da persistência, nessa ideia de não desistir. As pessoas que não desistem são vistas como o melhor tipo de gente. (…) É claro que é uma boa ideia persistir na cura para o câncer, ou na luta contra o bullying. Mas nunca desistir pode significar se torturar. Adictos nunca desistem. É algo que depende muito do contexto (grifo meu).”
Adam Phillips
Ou seja, se removermos a associação ao fascimo da ideia central do livro o qual o autor está promovendo (“On Giving Up”, ou “Sobre Desistir”, em tradução livre), pode-se argumentar que é uma proposição coerente, a qual faz sentido. Não desistir pode se tornar obsessão. Em algumas situações desistir talvez realmente seja a melhor resposta.
“Meu livro fala das coisas que precisamos abrir mão para ter a vida que queremos.”
Adam Phillips
Sim, precisamos aprender a sacrificar algumas coisas para poder conquistar outras. Essa ideia de sacrifício é antiga e também correlata à esta última citação do autor. E em um contexto de primeiro mundo, onde grandes questões já foram resolvidas e outras estão em vias de resolução, discutir a possibilidade de desistir pode parecer um tema um tanto quanto blasé, digno de nota de rodapé.
Mas em um país como o Brasil (onde 35 milhões de pessoas não dispõem de água tratada e 100 milhões de pessoas não tem acesso a rede de esgoto), me parece que devemos sim persistir na busca por uma vida melhor.
O que mais me intrigou na máteria da Folha e, por conseguinte, na opinião do autor, é justamente a associação da persistência ao fascismo. Essa história de associar opiniões das quais discordamos de “fascismo” já está ficando velha. Me lembra muito a história de Pedrinho e o Lobo (ou “O Menino que Gritava Lobo”). E esse é o exemplo perfeito da erosão semântica.
Se o preço da liberdade é a eterna vigilância, aparentemente esvaziar o significado da palavra “fascismo” parece servir a propósitos um tanto suspeitos. E associar fascismo a persistência e perserverança, um instrumento eficaz para fazer com que as pessoas aceitem seus próprios destinos e simplemente se entreguem para que uma autoridade superior cuide delas.
Infelizmente, é através deste tipo de banalização que surgem as teorias da conspiração e as sociedades se tornam cada vez mais polarizadas.
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